Distante
O Ciclo Caryl Churchill do Teatro Nacional Dona Maria II junta duas peças desta que é uma das figuras incontornáveis da dramaturgia universal.
Distante, é uma peça surrealista e distópica, na qual Teresa Coutinho traz à cena uma sociedade assolada por medo e choque de fronteiras, num texto contemporâneo (escrito pelo ano 2000).
Este enredo surrealista e abstrato representa um mundo imaginário, por vezes quase tão próximo do real que se torna assustador, e fá-lo em 3 atos.
Ao iniciar-se o espetáculo um calmo som de meditação é cortado pelo barulho de estática e notícias, reportagens e aberturas de telejornais, demasiado familiares e demasiado arrepiantes na falta de melhor descrição. Teresa quer levar-nos aos momentos iniciais da Pandemia enquanto nos é apresentado uma nuvem feita por alfinetes e um espaço de 153 azulejos brancos onde decorrerá a ação.

Os atores nunca saem do nosso campo de visão, estão posicionadas fora do ‘palco’ criado por Ângela Rocha, e a peça desenvolve-se nos azulejos, enquanto os atores que não estão em ‘cena’, lançam alguns olhares para o público. Nós estamos a ser observados enquanto observamos. O olhar e o gesto assumem um papel central.
No primeiro ato temos presente Joan, (Inês Dias) uma jovem que não consegue dormir, e a sua relação com Harper, a tia (Tânia Alves), algo muito frio. A rapariga viu algo que não devia: o tio a carregar crianças e adultos ensanguentados, muito sangue… para a parte detrás de um camião. E até bateu num deles.

O jogo de contar esta história e a sua reprimenda entre a tia e Joan é feito de forma habilidosa, Tânia observa a criança por detrás, como assumindo o poder – os olhares só se cruzam em momentos de tensão, ao contar o acontecimento, que por um grande, mas inútil esforço a não consegue censurar, Joan desenlaça os pormenores à medida que desacredita as mentiras e justificações da tia. Esta história não pode ser contada, mas o tio estava “do lado do bem e a fazer de tudo para termos um mundo melhor“, quer convencer-nos a tia.
Esta cena é interrompida pelo início da Parada dos Condenados à Morte, que segundo Caryl deveria ter entre 20 e 100 atores a representá-la, mas Teresa faz um vídeo e projeta-o no chão de azulejos, criando um efeito muito interessante.
O chão voltará a ser pisado no segundo ato, em que o absurdo domina.numa fábrica de chapéus, quem a acompanha é Todd (Nuno Pinheiro) e no que parece ser o intervalo de uma semana fabricam chapéus, cada dia maiores, chapéus para serem usados na Parada, não lhes interessa quem os usa ou porque é que os usam, o problema destas personagens são as suas condições de trabalho. Ignoram por completo o objetivo do seu trabalho, querem é melhores condições para o executarem. Progressivamente algumas questões vão sendo levantadas, é posta em causa a possível corrupção e o desenho de um sistema opressivo é aludido.

A passagem para o ato 3 é feita outra vez pelo meio de vídeo, desta vez reproduzindo animais em luta, lutas ferozes sangrentas, lutas que são transportadas para o diálogo entre Nuno e Tânia – de que lado estão os animais?
A politização dos seres vivos e o seu apoio aos países. Os crocodilos não são de confiar, o surreal e o abstracto confluem nesta discussão que nada mais mostra do que a polarização política do mundo. Inês Vaz entra ensanguentada e resolve a discussão. Uma coreografia surge, o medo e insegurança estão presentes, e a nuvem avança, agora é com o público, somos nós que temos que lidar com a estática fora do teatro.
De que lado estamos?

A fronteira entre verdade e a mentira cruza-se com o medo. O controlo, as ingerências do Poder nas liberdades individuais ganham ainda maior eco nos dias que se seguem, no momento em que a sociedade está a sair do confinamento, durante uma Pandemia em que muitos governos fazem uso e abuso de poder reforçado pela manipulação do medo.
O distópico toca em demasia o quotidiano, cada vez mais. Teresa Coutinho faz essa leitura do mundo, interseta-a com o texto de Caryl Churchill e traz-nos a palco uma criação que quer questionar sobre o que fazer e para onde estamos a ir.
Cerca de uma hora de espetáculo bem conseguido, sem fugir ao humor sarcástico e disruptivo de Caryl que por vezes nos questiona sobre a linha que temos entre a sanidade ou a lucidez, a lupa desta realidade aumentada é tensa.
Ainda bem que este espetáculo existe.
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Distante, está na sala estúdio do Teatro Nacional D.Maria II, em Lisboa até 6 de junho.
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